NIETZSCHE

"E aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música". "Vida sem música é um equívoco". NIETZSCHE

quinta-feira, 16 de junho de 2011

GIBRAN-SATANÁS






O padre Simão era conhecedor profundo dos assuntos espirituais e teológicos, versado nos segredos do pecado venial e mortal e nos mistérios do inferno, purgatório e paraíso.
Percorria as aldeias do Líbano do Norte, pregando penitência aos fiéis, curando suas almas do mal e previnindo-os contra as armadilhas do demônio, a quem padre Simão combatia dia e noite sem desanimar e sem descansar.
Os camponeses veneravam padre Simão e gostavam de comprar suas preleções e preces com prata e ouro, e disputavam o privilégio de presenteá-lo com o melhor de suas colheitas.
Certa tarde de outono, padre Simão caminhava por um lugar isolado em direção a uma aldeia perdida entre aqueles montes e vales, quando ouviu gemidos dolorosos vindos da beira da estrada. Olhou e viu um homem desnudo, estendido sobre o pedregulho; o sangue jorrava-lhe de feridas profundas na cabeça e no peito, e ele implorava socorro: "Salve-me! Ajuda-me! Tem pena de mim! Estou morrendo."
O padre parou, perplexo, considerou o homem e concluiu: "Deve ser algum salteador, que atacou um viajante e foi repelido. Está agonizando. Se expirar em minhas mãos, resposabilizar-me-ão pela sua morte."
E reiniciou sua marcha. Mas o moribundo deteve-o de novo: “Não me abandones, não me abandones. Tu me conheces  e eu te conheço. Vou morrer se não me socorreres.”
O padre empalideceu e pensou: “Deve ser um dos loucos que vagueiam pos estas campinas. O aspecto de seus ferimentos me arrepia. Em que posso ajudá-lo? O médico das almas não cura os corpos”.
E andou mais alguns passos. Mas o ferido lançou um grito que comoveria até as pedras: “Aproxima-te de mim. Somos amigos há muito tempo. És o padre Simão, o bom pastor; eu não sou um salteador nem um louco. Aproxima-te de mim para que te diga quem sou.”
O padre aproximou-se, inclinou-se sobre o moribundo e viu uma face estranha, na qual se misturavam a inteligência e a astúcia, a fealdade e a beleza, a perversidade e a doçura. Recuou e gritou: “Quem és tu? Nunca te vi em minha vida.”

O moribundo mexeu-se ligeiramente, fitou os olhos do padre com um sorriso significativo, e disse numa voz profunda e suave: “Eu sou Satanás.”
O padre soltou um grito terrível, que ecoou pelos recantos daquele vale, examinou novamente seu interlocutor, verificou sua semelhança com a figura dos demônios pintados na tela do Juízo Final que guarnecia a parede da igreja da aldeia, e bradou trêmulo: “Deus me revelou tua face infernal para alimentar meu ódio por ti. Sê maldito até o fim dos tempos"!
O demônio respondeu com certa impaciência: “Não sabes o que dizes, e não calculas o crime que cometes contra ti mesmo. Eu fui e continuo a ser a causa de teu bem-estar e de tua felicidade. Menosprezas meus benefícios e negas meu mérito, enquanto vives à minha sombra? Não foi minha existência a justificação da profissão que escolheste, e meu nome, o lema de tua vida? Que outra profissão abraçarias, se o destino decretasse a minha morte e os ventos desvanecessem o meu nome"?

“Há vinte e cinco anos, percorres estas aldeias para prevenir os homens contra minhas armadilhas, e eles compram tuas preleções com seu dinheiro e os frutos dos seus campos. Que outra coisa comprariam de ti amanhã se soubessem que seu inimigo, o demônio, morreu e que estão livres dos seus malefícios?" 
“Não sabes em tua ciência, que quando a causa desaparece, as consequências desaparecem também? Como aceitas, pois, que eu morra e que tu percas assim tua posição e o ganha-pão de tua família?”
O demônio calou-se. Os traços do seu rosto não exprimiam mais a súplica, mas, antes, a confiança. Depois, falou de novo: “Ouve-me, ó impertinente ingênuo, e te mostrarei a verdade que liga meu destino ao teu. Na primeira hora da existência. O homem pôs-se de pé diante do sol, estendeu os braços e clamou: Atrás das estrelas, há um Deus poderoso, que ama o bem. Depois, virou as costas ao sol e viu sua sombra alongada no chão, gritou: E nas profundezas da terra, há um  demônio maldito, que gosta do mal.”
“E o homem voltou à sua gruta, murmurando: Estou entre dois deuses terríveis: um é meu protetor; o outro, meu inimigo. E durante séculos, o homem sentiu-se vagamente dominado por duas forças: uma boa, que ele abençoava; outra má, que ele amaldiçoava”.
“Depois, apareceram os sacerdotes e eis, meu irmão, a história de sua aparição: Havia, na primeira tribo que se formou sobre a terra, um homem chamado Laús, que era inteligente, mas preguiçoso. Detestava os trabalhos braçais de que se vivia naquela época, e muitas vezes tinha que dormir de estômago vazio".
“Numa noite de verão, quando os membros da tribo estavam reunidos em volta do chefe, a conversar descansadamente, um deles levantou-se, de repente, apontou para a lua e disse com medo: Olhem para o deus da noite: sua cor empalideceu, ele está se transformando numa pedra preta.”
“Todos olharam a lua, e tremeram. Então, Laús, que tinha visto outros eclipses, levantou-se no meio da assembléia, ergueu os braços ao céu e, pondo em sua voz todo o fingimento de que era capaz, disse piedosamente: Prosternai-vos, meus irmãos,  e orai; pois o deus das trevas está agredindo o deus incandescente da noite. Se o primeiro vencer, morreremos; se for derrotado, viveremos. Orai para que vença o deus da lua.’"

“E Laús continuou a falar, até que a lua voltou ao seu esplendor natural. Os presentes ficaram maravilhados e manifestaram sua alegria com canções e danças. E o chefe da tribo disse a Laús: Conseguiste, esta noite, o que nenhum mortal conseguiu antes de ti. E descobriste segredos do universo que nenhum de nós conhecia. Regozija-te, pois a partir de hoje serás o segundo homem da tribo, depois de mim. Eu sou o mais valente e o mais forte, e tu és o mais culto e o mais sábio. Serás, portanto, o intermediário entre os deuses e mim, revelando-me seus segredos e ensinando-me o que devo fazer para merecer sua aprovação e sua benevolência."
“Respondeu Laús: Tudo o que os deus me revelarem no meu sonho, eu te revelarei ao despertar. Serei o intercessor entre os deuses e ti."
“O cacique regozijou-se e presenteou Laús com dois cavalos, sete bois, setenta cordeiros e setenta ovelhas. E, disse-lhe: Os homens da tribo construir-te-ão uma casa igual a minha e oferecer-te-ão, em cada colheita, parte dos frutos da terra. Mas, dize-me, quem é esse deus do mal, que se atreveria a agredir o deus resplandecente?"
“Laús respondeu: É o demônio, o maior inimigo do homem, a força que desvia a marcha do furacão para as nossas casas, que manda a seca as nossas plantações e as moléstias aos nossos rebanhos, que se alegra com nossa infelicidade e se entristece com nossos júbilos. Precisamos estudar seus humores e táticas para prevenir seus malefícios e frustrar seus ardis."
“O cacique apoiou a cabeça em seu cajado e sussurrou: Sei agora o ignorava : a humanidade saberá também o que sei e te honrará, Laús, porque nos revelaste os mistérios do nosso terrível inimigo e nos ensinaste a combatê-lo vitoriosamente."

“E Laús voltou à sua tenda, eufórico com sua habilidade e imaginação, E o cacique e seus homens passaram uma noite povoada de pesadelos."
“Assim apareceram os sacerdotes no mundo. E minha existência foi a causa de sua aparição, Laús foi o primeiro a fazer da luta contra mim a sua profissão. Mais tarde, a profissão prosperou e evoluiu até se tornar uma arte fina e sagrada, que abraçam somente os espíritos maduros e as almas nobres e os corações puros e as vastas imaginações."
“Em cada cidade que se erguia à face do sol, meu nome era o centro das organizações religiosas e culturais e artísticas e filosóficas. Eu construía os mosteiros e os eremitérios sobre o medo, e fundava os cabarés e os bordéis sobre  a luxúria e o gozo. Sou o pai e a mãe do pecado. Queres que o pecado morra, com minha morte?"
“Curioso é que me esfalfei a mostrar-te uma verdade que conheces melhor do que eu, e que serve a teus interesses ainda mais do que aos meus. Agora, faze o que quiseres. Carrega-me em tuas costas para tua casa e medica meus ferimentos, ou deixa-me agonizar e morrer aqui!”
Enquanto o demônio discursava, o padre Simão se agitava e esfregava as mãos. Depois, disse numa voz encabulada e hesitante: “Sei agora ao que ignorava há uma hora; perdoa, pois minha ingenuidade: Sei que estás no mundo para tentar, e a tentação é a medida com que Deus determina o valor das almas."
“Sei agora que, se morreres, a tentação morrerá contigo, e assim desaparecerão as forças que obrigam o homem à prudência e o levam a rezar, jejuar e adorar. Deves viver, porque sem ti os homens deixarão de temer o inferno e mergulharão nos vícios. Tua vida é, portanto, necessária à salvação da Humanidade; e eu sacrificarei meu ódio por ti no altar do meu amor pela Humanidade.”
O demônio soltou uma gargalhada similar à explosão dos vulcões, e disse: “Que inteligência e que habilidade, ó reverendo padre! E que conhecimento sutil da teologia! Com tua perspicácia, criaste uma justificativa para a minha existência, que eu próprio ignorava.”
Então, o padre Simão aproximou-se do demônio, carregou-o às costas e prosseguiu no seu caminho.